VATICANO - A língua na liturgia do Rito Romano: latino e língua vulgar - O discurso do Card. Francis Arinze na conferência litúrgica de Gateway

Quarta, 20 Dezembro 2006

Cidade do Vaticano (Agência Fides) - Publicamos o texto integral do discurso pronunciado pelo Card. Francis Arinze, Prefeito da Congregação para o Culto divino e a disciplina dos Sacramentos, na conferência litúrgica de Gateway (St. Louis, Missouri, 11 de novembro de 2006).

1. A dignidade superior da oração litúrgica
A Igreja fundada por Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo se esforça para reunir juntamente homens e mulheres de todas as raças, línguas, povos e nações (cf. Ap 5:9), de modo que “toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, a glória de Deus Pai” (Fil 2:11). No dia de Pentecostes havia homens e mulheres de “todas as nações sob o céu” (cf. Atos 2:5) escutando os Apóstolos que narravam as prodigiosas obras de Deus.
Esta Igreja, este novo povo de Deus, este corpo místico de Cristo, reza. A sua oração pública é a voz de Cristo e da Igreja sua esposa. Cabeça e membros. A liturgia é um exercício do magistério sacerdotal de Jesus Cristo. Nesta o culto público é realizado pela inteira Igreja, ou seja, Cristo que associa a ele os seus membros. “Por isso cada celebração litúrgica, em quanto obra de Cristo Sacerdote e de seu corpo, que é a Igreja, é ação sagrada por excelência, e nenhuma outra ação da Igreja se compara no mesmo título e no mesmo grau no que diz respeito à eficácia” (Sacrosanctum Concilium, 7). Da sagrada fonte da liturgia todos nós que temos sede das graças da redenção recebemos água viva (cf. Jo 4:10)
A consciência de que Jesus Cristo é o sumo sacerdote em cada ato litúrgico deveria instilar em nós uma grande reverência. Como afirma Santo Agostinho, “Ora por nós como nosso Sacerdote; ora em nós como nossa Cabeça; é orado por nós como nosso Deus. Reconhecemos, portanto, nele a nossa voz, e em nós a sua voz” (Enarratio in Psalmum, 85; CCL 39, 1176).

2. Diversos ritos na Igreja
Na liturgia sagrada a Igreja celebra os mistérios de Cristo por meio de sinais, símbolos, gestos, movimentos. Elementos materiais e palavras. Na nossa reflexão nos concentraremos sobre as palavras usadas na adoração divina de rito romano ou latino. Os elementos chave da liturgia sacra, o sete sacramentos, nos vêm de Nosso Senhor Jesus Cristo mesmo. À medida que a Igreja se difundia e crescia entre os povos e culturas diversas, foram desenvolvidos diversos modos para celebrar os mistérios de Cristo. Podemos individuar quatro ritos originários: antioquiano, alexandrino, romano e galicano. Estes deram vida a novos ritos principais na atual Igreja católica: na Igreja latina domina o rito romano e entre as igrejas orientais encontramos o rito bizantino, armênio, caldeo, copto, etíope, malabar, maronita e siriano. Cada “rito” representa uma a composição de liturgia, teologia, espiritualidade e direito canônico. As características fundamentais de cada rito remontam aos primeiros séculos, aos traços essenciais da era apostólica se não mesmo à época de nosso Senhor.
O rito romano, que é objeto de nossa reflexão, na sua época moderna, como dissemos, é a expressão litúrgica predominante da cultura eclesiástica por nós chamada rito latino. Como vocês sabem, dentro da arquidiocese de Milão pratica-se um “rito irmão” que toma o nome de Santo Ambrósio, o grande Bispo de Milão: o rito “ambrosiano”. Em alguns locais e em algumas ocasiões especiais na Espanha a liturgia é celebrada segundo um antigo rito hispânico ou moçarábico, estes representam duas veneráveis exceções das quais não nos ocuparemos nesta sede.
A Igreja de Roma utilizou o grego desde o princípio. Somente gradualmente foi introduzido o latim até que, no quarto século, a Igreja de Roma foi definitivamente latinizada (cf. A. G. Martimort ed; La Chiesa in preghiera, Collegeville, 1992, I, p. 161-165).
O rito romano se difundiu amplamente naquela que hoje chamamos Europa ocidental e nos continentes evangelizados em geral por missionários europeus na Ásia, África e Oceania. Hoje, com uma mais fácil circulação das pessoas, há católicos de outros ritos (chamadas de um modo geral Igrejas orientais) em todos estes continentes.
A maior parte destes ritos possui uma língua original, que dá também a cada rito a sua própria identidade histórica. O rito romano tem o latim como língua oficial. As edições típicas dos seus livros litúrgicos foram sempre publicadas em latim até hoje.
É um fenômeno importante o fato de que muitas religiões do mundo, ou as suas ramificações principais, tenham uma língua que lhes é cara. Não podemos pensar na religião hebraica sem pensar na língua hebraica. O Islam tem o árabe. O hinduismo clássico considera o sânscrito como língua oficial, o budismo tem os próprios textos sacros em pali.
Seria superficial de nossa parte considerar esta tendência como algo de esotérico, estranho, fora de moda, antiquado ou medieval. Significaria ignorar um fino elemento da psicologia humana. Nas questões religiosas as pessoas tendem a conservar aquilo que receberam das origens, o modo em que os seus predecessores articularam a própria religião e oraram. As palavras e as fórmulas usadas pelas primeiras gerações são caras àqueles que hoje às herdam. Se é verdadeiro que não se pode certamente identificar uma religião com uma língua, a maneira na qual essa se compreende pode representar uma particular expressão lingüística em uso no seu clássico período de crescimento.


3. Vantagens do latim na liturgia romana
Como já se disse, no quarto século, o latim havia já substituído o grego como língua oficial da Igreja de Roma. Entre os Padres latinos mais importantes da Igreja que escreveram em modo extensivo e belo em latim figuram Santo Ambrósio (339-397), Santo Agostinho de Hipona (354-430), São Leão Magno ( + 461) e papa Gregório Magno (540-604). Papa Gregório em particular, levou o latim aos máximos esplendores na liturgia sacra, nos seus sermões e no uso geral da Igreja.
A Igreja de rito romano mostrou um excepcional dinamismo missionário. Isto explica porque grande parte do mundo foi evangelizada pelos araltos do rito latino. Muitas línguas européias modernas afundam as próprias raízes na língua latina, algumas mais do que outras. Exemplos disso são o italiano, o espanhol, o romeno, o português e o francês. Mas também o inglês e o alemão possuem muitos elementos de latim.
Os papas e a Igreja encontraram o latim muito adequado por várias razões. É língua justa para uma Igreja que é universal, uma Igreja na qual todos os povos, línguas e culturas deveriam sentir-se em casa, e nenhum é considerado estrangeiro. Além disso, a língua latina tem uma certa estabilidade que as línguas faladas cotidianamente, nas quais as palavras frequentemente mudam de tonalidade e significado, não podem ter. Um exemplo é a tradução do latino “propagare”. A Congregação para a Evangelização dos Povos, quando foi fundada em 1627, foi chamada “Sacra Congregatio de Propaganda Fide”. Mas na época do Concílio Vaticano II muitas línguas modernas usavam o termo “propaganda” no senso em que nós entendemos a “propaganda política”. Por isso a Igreja hoje prefere evitar a expressão “de propaganda fide”, em favor da “Evangelização dos povos”. O latim tem a característica de possuir palavras e expressões de geração em geração. Esta é uma vantagem quando se trata de articular a nossa fé católica e preparar documentos papais ou outros textos da Igreja. Também as modernas universidades apreciam estas características e alguns dos seus títulos solenes são em latim.
O bem-aventurado papa João XXIII na sua Constituição Apostólica, Veterum Sapientia, pulicada em 22 de fevereiro 1962, dá estas duas razões e fornece uma terceira. A língua latina tem uma nobreza e uma dignidade não desprezáveis (cf. Veterum Sapientia, 5, 6, 7). Podemos acrescentar que o latim é conciso, preciso e poeticamente equilibrado.
Não é admirável que pessoas, especialmente clérigos, se bem formados possam encontrar-se em reuniões internacionais e serem capazes de comunicar entre eles ao menos em latim? E, ainda mais importante, será talvez coisa que mais de um milhão de jovens tenham podido se encontrar na Jornada Mundial da Juventude em Roma em 2000, em Toronto em 2002 e em Colônia em 2005, e cantar partes da Missa, e especialmente o Credo, em Latim? Os teólogos podem estudar textos originais dos primeiros Padres latinos e dos escolásticos sem muitas dificuldades porque estes textos foram escritos em latim.
É verdade que a tendência, seja dentro da Igreja seja no mundo em geral, a prestar mais atenção às línguas modernas, como o inglês, o francês e o espanhol, que possam ajudar-se a encontrar um trabalho mais rapidamente no moderno mercado de trabalho ou no Ministério dos Negócios Estrangeiros de um país. Mas a exortação de papa Bento XVI aos estudantes das faculdades de letras clássicas e cristãs da pontifícia Universidade Salesiana de Roma, ao fim da Audiência geral de quarta-feira de 22 de fevereiro de 2006, mantém a sua validez e relevância! Ofereço-lhes aqui uma livre tradução em inglês: “justamente os nossos predecessores haviam insistido sobre o estudo da grande língua latina de modo que se pudesse aprender melhor a doutrina de salvação que se encontra nas disciplinas eclesiásticas e humanísticas. Ao mesmo tempo lhes convidamos a cultivar a sua importância” (No Osservatore Romano, 45, 23 fev. 2006, p.5).

4. O Canto gregoriano
“A ação litúrgica torna-se mais nobre quando os ritos sacros feitos solenes no canto (Sacrosanctum Concilium, 113). Há um velho ditado: bis orat qui bene cantat, que significa, “reza duas vezes quem canta bem”. Isto porque a intensidade que a oração adquire quando cantada aumenta o seu ardor e multiplica a sua eficácia (cf. Paulo VI: Discurso à Schola Cantorum italiana de 25 de setembro de 1977, Notitiae 136, nov. 1997, p. 475).
A boa música ajuda a promover a oração, ao elevar o animo dos fiéis a Deus e a dar às pessoas um sabor da bondade de Deus.
No rito latino o assim chamado canto gregoriano foi sempre tradicional. Um canto litúrgico característico existia realmente em Roma antes de São Gregório Magno ( + 604). Mas foi este pontífice quem deu a este canto a maior proeminência. Após São Gregório esta tradição do canto continuou a desenvolver-se e a ser enriquecida até os acontecimentos que puseram fim à Idade Média. Os monastérios, especialmente aqueles das ordens beneditinas, fizeram muito para preservar esta herança.
O canto gregoriano é caracterizado por uma cadência meditativa emocionante. Toca em profundidade o ânimo. Mostra alegria, tristeza, arrependimento, petição, esperança, louvor ou agradecimento, como pode indicar a festa particular, parte da Missa ou uma outra oração. Torna mais visíveis os Salmos. Possui um fascínio universal que o torna adequado a todas as culturas e a todos os povos. É apreciado em Roma, Solemses, Lagos, Toronto e Caracas. Ressona nas catedrais, nos seminários, nos santuários, nos centros de peregrinação e nas paróquias tradicionais.
O Santo Papa Pio X celebrou o canto gregoriano em 1904 (Tra le Sollecitudini, 3). O Concílio Vaticano II louvou-o em 1963: “A Igreja reconhece o canto gregoriano como canto próprio da liturgia romana ao qual ocorre reservar, em paridade de condições, o primeiro lugar nas ações litúrgicas (Sacrosanctum Concilium, 116). O Servo de Deus, papa João Paulo II repetiu este louvor em 2003 (cf. Quirografia para o centenário de Tra le Sollecitudini, 4-7; em Cong. Para o culto divino e a disciplina do sacramento: Spiritus et Sponsa, 2003, p. 130). Papa Bento XVI encorajou a associação internacional dos Pueri Cantores por ocasião do encontro em Roma em fins de 2005, que designa uma posição privilegiada ao canto gregoriano. Em Roma e em todo o mundo a Igreja é benta com muitos coros importantes, seja profissionais que amadores, que interpretam de modo belíssimo o canto, e comunicam o seu entusiasmo por este.
Não é verdade que os fiéis leigos não querem cantar o canto gregoriano. O que pedem é que os sacerdotes, os monges e as religiões compartilhem este tesouro com eles. Os CDs produzidos por monges beneditinos de Silos, da sua casa generalícia em Solesmes e por muitas outras comunidades são muito vendidos entre os jovens. Os monastérios são visitados por pessoas que querem cantar as laudes e especialmente as vésperas. No curso de uma cerimônia para a ordenação de onze sacerdotes que celebrei na Nigéria no ano passado, cerca de 150 sacerdotes cantaram a primeira oração eucarística em latim. Foi muito belo. Os fiéis presentes, mesmo se não eram escolásticos latinos, apreciaram muito. Deveria ser normal que nas paróquias onde há quatro ou cinco missas aos domingos, uma dessas fosse cantada em latim.

5. O Vaticano desencorajou o uso do latim?
Alguns pensam, ou dão a impressão de que o Concílio Vaticano II tenha desencorajado o uso do latim na liturgia. Não é assim.
Pouco antes de abrir o Concílio, o beato papa João XXIII, em 1962, escreveu uma Constituição apostólica, para insistir no uso do latim na Igreja. O Concílio Vaticano II, ainda que tenha admitido uma certa introdução da língua vulgar, insistiu sobre a importância do latim: “O uso da língua latina, salvo direitos particulares, seja conservado nos ritos latinos (Sacrosanctum Concilium, 36). O Concílio solicitou também aos seminaristas “adquirir o conhecimento da língua latina necessário para compreender e utilizar as fontes de tantas ciências e os documentos da Igreja (Optatam Totius, 13). O Código de Direito Canônico publicado em 1983 decreta: “A celebração eucarísitica seja realizada em língua latina ou em outra língua, desde que os textos litúrgicos tenham sido devidamente aprovados” (Cânone 928).
Aqueles portanto que querem dar a impressão de que a Igreja quis retirar o latim da liturgia se enganam. Uma manifestação da aceitação da liturgia latina bem celebrada por parte das pessoas realizou-se em nível mundial em abril de 2005, quando milhões de pessoas seguiram em televisão as exéquias de Papa João Paulo II e, duas semanas depois, a missa de instauração de Papa Bento XVI.
É importante o fato de que os jovens aceitem de bom grado a Missa celebrada por vezes em latim. Certamente os problemas não faltam. Há também mal-entendidos ou abordagens erradas por parte dos sacerdotes no uso do latim. Mas para melhor centrar a questão é necessário antes de tudo examinar o uso do vernáculo na liturgia de rito romano hoje.
6. A língua vulgar. Introdução. Difusão. Condições.
A introdução das línguas locais na sacra liturgia de rito latino não foi um fenômeno que se desenvolveu de modo imprevisto. Após a parcial experiência realizada em alguns países nos anos precedentes, já em 5 e 6 de dezembro de 1962, após longos debates por vezes muito acesos, os Padres do Concílio Vaticano II adotaram o princípio segundo o qual o uso da língua mãe, na Missa ou em outras partes da liturgia, podia ser vantajoso às pessoas. No ano seguinte o Concílio votou a aplicação deste princípio à Missa, o ritual e a Liturgia das Horas (cf. Sacrosanctum Concilium, 36, 54, 63, 76, 78, 101).
Seguiu-se depois um uso mais extenso do vernáculo. Mas, como se os Padres do Concílio tivessem previsto a possibilidade de que o latim perdesse sempre mais terreno, insistiram para que o latim fosse mantido.
Como já citado, o artigo 36 da Constituição da Liturgia Sacra começa decretando que “O uso da língua latina, salvo direitos particulares, seja conservado nos ritos latinos”. A artigo 54 ditava os passos a seguir para “permitir aos fiéis de recitar ou cantar juntos, também em língua latina, as partes do ordinal da missa que lhes cabem”. Na celebração da Liturgia das Horas, segundo a tradição secular do rito latino, pede-se aos clérigos de “manter a língua latina” (SC, 101).
Mas embora estabelecendo limites, os Padres do Concílio anteciparam a possibilidade de um uso mais extenso do vulgar. O artigo 54 com efeito acrescenta: ‘Se depois em qualquer lugar pareça oportuno um uso mais amplo da língua nacional na missa, observe-se o quanto prescreve o art. 40 desta constituição”. O artigo 40 dá as diretivas sobre o papel das Conferências Episcopais e da sé apostólica sobre uma matéria tão delicada. O vernáculo havia sido introduzido. O resto é história. Os desenvolvimentos foram tão rápidos que alguns clérigos, religiosos e fiéis leigos hoje não são conscientes do fato de que o Concílio Vaticano II não introduziu a língua vulgar em todas as partes da liturgia.
Pedidos e extensões do uso do vernáculo não foram atendidos. Sob a urgente solicitação de algumas Conferências Episcopais, papa Paulo VI antes autorizou a celebração do Prefácio da Missa em vernáculo (cf. Carta do Cardeal Secretário de Estado, 27 de abril de 1965), posteriormente, em 1967, do inteiro Cânone e das orações de ordenação. Enfim, em 14 de junho de 1971, em 14 de junho de 1971, a Congregação para o Culto Divino expediu uma comunicação na qual se afirmava que as Conferências Episcopais podiam autorizar o uso do vernáculo em todo os textos da missa, e cada ordinal poderia dar a mesma autorização coral ou privada da Lirturgia das Horas (sobre o inteiro desenvolvimento v. A. G. Martimort: o diálogo entre Deus e o seu povo, em A. G. Martimort: La Chiesa in preghiera, I, p. 166).
As razões da introdução da língua mãe não são difíceis de encontrar. Esta promove uma melhor compreensão daquilo que a Igreja reza, porque é ardente o desejo da mãe Igreja de que todos os fiéis sejam formados a esta plena, consciente e ativa participação às celebrações litúrgicas, que é solicitada da natureza mesma da liturgia... (e à qual) o povo cristão tem direito e o dever em força do batismo (SC 14).
Ao mesmo tempo, não é difícil imaginar o quanto seja complicado e delicado o trabalho de tradução. Ainda mais difícil é a questão da adaptação cultural, especialmente quando pensamos na sacralidade dos ritos sacramentais, a tradição secular do rito latino, e o estreito laço entre fé e culto verificáveis na antiga fórmula: lex orandi lex credendi.
Passemos agora a questão espinhosa das traduções em vernáculo da liturgia.

7. As traduções em vernáculo
A tradução dos textos litúrgicos do original latino nas várias línguas vernáculas é um elemento muito importante na vida de oração da Igreja. Não é uma questão de oração privada, mas de oração pública oferecida pela santa mãe Igreja, que tem a sua Cabeça em Cristo. Os textos latinos foram preparados com grande cuidado pela doutrina, uma exata expressão “livra de qualquer influência ideológica e que possui aquela qualidade através das quais os sacros mistérios de salvação e a indefectível fé da Igreja são eficazmente transmitidos por meio da linguagem humana à oração, e à digna adoração oferecida ao Altíssimo (Liturgiam Authenticam, 3). As palavras usadas na liturgia manifestam a fé da Igreja e são guiadas por esta. A Igreja portanto necessita de um grande cuidado ao digerir, preparar e aprovar as traduções, de modo que sequer uma palavra inapropriada possa ser inserida na liturgia por um indivíduo que tenha um escopo pessoal ou que simplesmente não seja consciente da seriedade dos ritos.
Portanto as traduções deveriam ser fiéis ao texto original latino. Não deveriam ser livres composições. Como salienta a Liturgiam Authenticam, o principal documento da Santa Sé que fornece diretivas sobre as traduções: “A tradução dos textos litúrgicos da liturgia romana não é um trabalho de inovação criativa, mas se trata de uma tradução dos textos originais com fidelidade e acuro nas línguas vulgares” (n. 20).
O gênio do rito latino deveria ser respeitado. A tripla repetição é uma das suas características. Alguns exemplos são: “mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”; “Kyrie Eleison, Christie eleison, Kyrie eleison”, “Agnus Dei qui tollis...”, três vezes. Um atento estudo do “Gloria in Excelsis Deo” mostra também este “triplette”. As traduções não deveria eliminar ou banalizar tal característica.
A liturgia latina exprime não somente fatos, mas sentimentos, sensações, por exemplo, diante da transcendência de Deus, de sua majestade, de sua misericórdia e amor infinito (cf. Liturgiam Authenticam, 25). Expressões como “Te igitur, cementissime Pater”, “Supplices te rogamus”, “Proitius esto”, “veneremur cernui”, “Omnipotens et misericors Dominus”, “nos servi tui”, não deveriam ser esvaziadas ou democratizadas por uma tradução iconoclasta. Algumas destas expressões latinas são difíceis de traduzir. São necessários os melhores especialistas de liturgia, cultura clássica, patrologia, teologia, espiritualidade, música e literatura de modo a elaborar traduções que resultem belas sobre os lábios da Santa Mãe Igreja. As traduções deveriam refletir reverência, gratidão e adoração diante da majestade transcendente de Deus e a fome do homem de Deus que são muito claras nestes textos latinos. O papa Bento XVI em sua Mensagem à reunião do comitê inglês da “Vox Clara” em 9 de novembro de 2005, fala de traduções que “serão capazes de transmitir os tesouros de uma celebração eucarística devota e reverente” (In Notitiae, 471-472, nov-doc 2005, p. 557).
Muitos textos litúrgicos são ricos de expressões bíblicas, sinais e símbolos. Estes possuem modelos de oração que remontam aos Salmos. O tradutor não pode ignorar isto.
Uma língua falada hoje por milhões de pessoas terá sem dúvida muitas tonalidades e variações. Há uma diferença entre o inglês usado na Constituição de um país, o falado pelo Presidente da República, a língua convencional dos trabalhadores de porto ou a dos estudantes, ou a conversação entre pais e filhos. O modo de exprimir-se não pode ser o mesmo em todas estas situações, mesmo se todos usam o inglês. Qual forma deveriam adotar as traduções litúrgicas? Sem dúvida o vernáculo litúrgico deveria ser inteligível e fácil de proclamar e de entender. Ao mesmo tempo deveria ser digno, sóbrio, estável e não sujeito a mudanças freqüentes. Não deveria hesitar em usar algumas palavras não geralmente usadas na linguagem quotidiana, ou palavras que são associadas à fé e ao culto católico. Portanto se deveria dizer cálice e não simplesmente taça, patena e não prato, cibório e não recipiente, sacerdote e não celebrante, hóstia sacra e não pão consagrado, hábito e não roupa. Portanto a Liturgiam Authenticam afirma: “enquanto a tradução deve transmitir o tesouro perene de orações através de uma linguagem compreensível no contexto cultural para a qual esta é compreendida... não deveria surpreender que tal língua seja diferente em algum modo do modo de falar cotidiano” (n. 47).
A inteligibilidade não quer dizer que cada palavra deva ser compreendida imediatamente. Observemos atentamente ao Credo. É um símbolo, uma declaração solene que resume a nossa fé. A Igreja teve de convocar alguns Concílios Gerais para uma exata articulação de alguns artigos da nossa fé. Não todos os católicos na missa compreendem imediatamente e em plenitude algumas formas litúrgicas tais como a Encarnação, a Criação, Paixão, Ressurreição, da mesma substância do Pai, que procede do Pai e do Filho, transubstanciação, presença do real e Deus onipotente. Esta não é uma questão de inglês, francês, italiano, hindi ou swahili.
Os tradutores não deveriam tornar-se iconoclastas que destroem ou danificam à medida que traduzem. Não tudo pode ser explicado durante a liturgia. A liturgia não exaure a inteira ação da Igreja (cf. Sacrosanctum Concilium, 9). É necessário também teologia, catequese e predicação. E mesmo quando se oferece uma boa catequese, um mistério da nossa fé permanece sempre um mistério.
Na verdade podemos dizer que a coisa mais importante no culto divino não é compreender cada palavra ou conceito. Não. A consideração mais importante é que nos encontramos em uma postura de reverência e de temor diante de Deus, que adoramos, louvamos e agradecemos. O sagrado, as coisas de Deus, devem ser afrontadas sem idéias preconcebidas.
Na oração, a língua é antes de tudo um contato com Deus. Sem dúvida a língua serve também para uma comunicação inteligível entre seres humanos. Mas o contato com Deus tem a prioridade. Na mística, tal contato com Deus se aproxima e por vezes atinge o inefável, o silêncio místico onde cessa a linguagem.
Não surpreende portanto que a linguagem litúrgica se diferencie de algum modo da nossa linguagem quotidiana. A linguagem litúrgica busca exprimir a oração cristã na qual se celebram os mistérios de Cristo.
Como para reunir vários elementos necessários para produzir boas traduções litúrgicas, permitam-me citar o discurso de papa João Paulo II aos bispos americanos provenientes da Califórnia, Nevada e Hawaii durante a sua visita a Roma em 1993. O papa solicitava a eles de preservarem toda a integridade doutrinal e a beleza dos textos originais. Uma das nossas responsabilidades a este respeito é tornar disponível traduções apropriadas dos livros litúrgicos oficiais de modo que, após a revisão e a confirmação por parte da Santa Sé, possam ser instrumento e garantia de uma partilha genuína no mistério de Cristo e da Igreja. Lex orandi, lex credendi. A tarefa árdua da tradução deve buscar manter a plena integridade doutrinal e, segundo o gênio de cada língua, a beleza dos textos originais. Quando tantas pessoas têm sede do Deus vivente ― cuja majestade e misericórdia estão no coração da oração litúrgica ― a Igreja deve responder com uma língua de louvor e de culto que exalte o respeito e o seu poder. Quando os fiéis se reúnem para celebrar a obra do nosso Redentor, a linguagem da oração ― livre de ambigüidades doutrinais ou de influências teológicas ― deveria exaltar a dignidade e a beleza da celebração mesma, exprimindo fielmente a fé da Igreja e a unidade (em Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVI, 2, 1983, p. 1339-1400).
A partir destas considerações, se conclui que a Igreja deve exercitar uma atenta autoridade sobre as traduções litúrgicas. A responsabilidade pela tradução dos textos cabe à Conferência episcopal que submete as traduções à Santa Sé para a necessária recognitio (cf. SC 36; CIC Canone 838; Lit. Authenticam, 80).
Consequentemente nenhum indivíduo, nem mesmo um sacerdote ou um diácono tem uma autoridade para mudar a expressão aprovada na liturgia sacra. Isto é também bom senso. Mas por vezes notamos que o bom senso não é muito difundido. Por isso a Redemptionis Sacramentum teve de dizer expressamente “ponha-se fim ao reprovável uso com o qual os Sacerdotes, os Diáconos ou mesmo os fiéis mudam e alteram ao seu arbítrio aqui e acolá os textos da sacra Liturgia por estes pronunciados. Assim fazendo, de fato, tornam instáveis a celebração da sacra Liturgia e não raramente alteram o seu sentido autêntico” (Red. Sacramentum, 59; cf. também Instrução Geral sobre o Missal Romano n. 24).

8. Que cabe a nós?
Para concluir estas reflexões, podemos nos perguntar que cabe a nós.
Deveremos fazer o máximo para apreciar a língua que a Igreja usa na liturgia e unir os nossos corações e as nossas vozes, seguindo as indicações de cada rito litúrgico. Não todos sabem o latim, mas os fiéis leigos podem ao menos aprender as respostas mais simples em latim. Os sacerdotes deveriam dar mais atenção ao latim, celebrar uma missa em latim de tanto em tanto. Nas grandes igrejas onde se celebram muitas missas nos domingos ou nos dias festivos, porque não celebrar uma destas missas em latim? Nas paróquias rurais uma missa latina deveria ser possível, digamos, uma vez por mês. Nas assembleias internacionais, o latim torna-se ainda mais urgente. Portanto os seminários deveriam prestar mais atenção na preparação e formar os sacerdotes também no uso do latim (cf. Outubro de 2005, Sínodo dos Bispos, prop. 36).
Todos os responsáveis pela traduções em língua vulgar deveriam esforçar-se por oferecer o melhor, seguindo a guia dos documentos da Igreja, especialmente a Liturgiam Authenticam. A experiência ensina que não é supérfluo observar os sacerdotes, os diáconos e todos aqueles que proclamam os textos litúrgicos, deveriam lê-los com clareza e com a devida reverência.
A língua é tudo. Mas é um dos elementos mais importantes que necessitam atenção a fim de que as boas celebrações sejam belas e ricas de fé.
É uma honra para nós tornarmo-nos parte da voz da Igreja na oração pública. Que a beata Virgem Maria, Mãe do Verbo feito carne cujos mistérios celebramos na sacra liturgia, obtenha para todos nós a graça de fazer a nossa parte para participarmos com o canto ao louvor do Senhor, seja em latim seja em vernáculo. Francis Card. Arinze (Agência Fides 20/12/2006)


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